A partir das leituras de Rouchou (2009), Candau (2010), Rocha e Eckert (2013) pode-se refletir sobre as experiências e as articulações da memória do sensível e campos do imaginário. Busca-se articular estas discussões conceituais através da análise do filme O Céu de Lisboa[1] (Lisbon Story, Wim Wenders, 1994).
O imaginário cinematográfico tem a seu dispor infinitas possibilidades de produzir significados que emanam temporal e espacialmente, e, assim, percorrem as lembranças dos indivíduos, que podem observar, reconhecer, compreender e habitar a paisagem apresentada.
Impressões isoladas do dia geraram em nós impulsos interiores, evocaram associações; objetos e circunstâncias permaneceram em nossa memória, sem, no entanto, apresentarem contornos claramente definidos, mostrando-se incompletos, aparentemente fortuitos. Será possível transmitir, através de um filme, essas impressões da vida.? E evidente que sim; na verdade, a virtude específica do cinema, na condição de mais realista das artes, é ser o veículo de tal comunicação, (TARKOVSKI, 2010, p. 21).
Philip ao caminhar pelas ruas de Lisboa na busca das imagens apresentadas nas cenas filmadas por Fritz (re) descobre a cidade, seus sons, um pouco de sua história, o dia-a-dia de seus moradores. Os signos e ritmos destas paisagens ditam trajetórias, conforme Silveira e Cancela (2013) articulam as sensibilidades e intenções, promovem variâncias e continuidades nas experiências de jogar o social.
Atitudes simples do dia-a-dia quando conectados com experiências ligadas aos sentidos: tato, barulho, degustação, cheiro e cores, auxiliam a perceber a condição indispensável do reconhecimento ligado a memória, diante da experiência e de elementos do passado coletivo e individual. “A memória não está nos suportes materiais convencionais: ela está no corpo. Está na própria forma de o sujeito trabalhar as questões do seu dia-a-dia”, (ROUCHOU, 2009, p. 117).
Wenders apresenta o espaço citadino, valorizando o imaginário dos indivíduos e os percursos da memória, permitindo e evocando ao espectador um olhar sobre a própria experiência, daquilo que é vivido por cada um, e que é fundamentalmente intransferível. Tanto para os indivíduos que conhecem o local, quanto para aqueles que nunca tinham visto estas paisagens, evidencia-se que “é na prática de rememoração que a paisagem é empreendida como experiência de evocação simbólica, (SILVEIRA E CANCELA, 2013, p.200).
Nos enquadramentos, ângulos e movimentos que descrevem Lisboa, Wenders convida o espectador a “experienciar” seus percursos narrativos, em que se estabelece uma partilha de sentidos. “Os sentidos abrem caminhos para que a memória encontre uma via de instalação e faça seu trajeto”, (ROUCHOU, 2009, p. 120). Assim, na concepção da narrativa da paisagem e, pela beleza e profundidade das imagens, o olhar contemplativo cede lugar a sensações plurais, “[…] cujas narrativas expressam uma linguagem coletiva que comunica uma pluralidade de identidades e memórias”, (SILVEIRA E CANCELA, 2013, p.203).
Interessante, as cenas em que Philip brinca com as crianças imitando sons com objetos diferenciados, conforme Candau (2010) a memória é sempre feita de coisas lembradas e coisas esquecidas. Eles brincam com a memória, imitam animais, objetos, práticas do dia-a-dia, em um jogo de compartilhamento de memórias sonoras.
Enfim, este filme segue a indicação de que “toda paisagem é memória”, (SILVEIRA E CANCELA, 2013, p.222). O jogo da memória é orquestrado pelas sensações, pelas cenas cotidianas da vida social dos personagens e seus entrecruzamentos, que descrevem a ligação com o tempo e, a legitimação de suas experiências. É preciso refletir:
Afinal nós acreditamos na memória porque tudo passou e quem nos garante que isso que imaginamos que passou, passou realmente. A quem devemos perguntar? Este mundo nesta suposição então é uma ilusão. A única coisa verdadeira é a memória. Mas, a memória é uma invenção. No fundo, quer dizer, No cinema a câmera pode fixar um momento, mas este momento já passou, no fundo o que ele traz é um fantasma deste momento. E já não temos a certeza que este momento tenha existido fora da película. Ou a película é uma garantia da existência deste momento? Não sei. O que disso sei é que vivemos. Vivemos, afinal não há dúvida. No entanto vivemos com os pés na terra, comemos, gozamos da vida. (Depoimento extraído do filme).
Referências
CANDAU, Joel. Shared memory, odours and sociotransmitters or: “Save the interaction”! Outlines – Critical Practice Studies. No. 2. 2010. Disponível em: https://pt.scribd.com/doc/109001853/Shared-Memory-Joel-Candau
ROUCHOU, Joelle. Memória do olfato: o cheiro de Jasmin. In VELOSSO, Monica P. Et ali (org). Corpo, identidades, memórias e subjetividades. Rio de Janeiro, Mauad e Faperj, 2009. P 117 a 128
SILVEIRA, Flávio Leonel; CANCELA, Cristina Donza. A fabricação das paisagens, os jogos da memória e os trabalhos da imaginação criadora. In: ROCHA, Ana Luiza Carvalho e ECKERT, Cornelia. Antropologia da e na cidade. Porto Alegre, Marcavisual, 2013.
______. As variações “paisageiras” na cidade e os jogos da memória. In: ROCHA, Ana Luiza Carvalho e ECKERT, Cornelia. Antropologia da e na cidade. Porto Alegre, Marcavisual, 2013.
TARKOVSKI, Andrei. Tempo, ritmo e montagem. In: _____. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 134-148.
[1] O filme tem Lisboa como cenário. É para lá que se desloca o alemão Philip (Rüdiger Vogler) atendendo ao apelo do amigo cineasta Fritz (Patrick Bauchau), que roda um documentário em Lisboa. Quando chega lá, Philip se depara com o desaparecimento do amigo, que deixou uma fita de gravação sem som. O técnico de som vai perambular pelas ruas de Lisboa, gravando os sons para completar as imagens capturadas no filme.